O Bicho

Teo ria da computação Matemáticas dos Mundos



"Torturar a matéria até que ela confesse seus números", o fazer científico e as matemáticas. Parte da fala de Ricardo Kubrusly no debate "A criação das formas", em Encontros Carbônicos, Conversa com Luiz Alberto Oliveira, Ricardo Kubrusly e Tunga, que pode ser lido aqui, ou assistido aqui
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        O lixo conta histórias, aproxima as vidas, esclarece fatos, revela muito dos povos que os produzem. Nos dias de hoje, bem como em tempos passados, uma "sociologia do lixo" seria capaz de traçar perfis sociais, destrinchar a dinâmica social, e assim, identificar classes e privilégios, tornar visíveis as misérias e injustiças sociais.

Se o lixo carrega a dinâmica da vida, carrega também as matemáticas dos lugares e dos tempos. Assim, estudar o lixo é também compreender suas matemáticas.

Uma pesquisa recente argumenta que as classes mais baixas da sociedade desperdiçam mais: foram encontrados restos de alimentos em maior proporção no lixo das classes mais baixas do que no lixo das classes mais altas. Um exemplo: quase um quilo de arroz estragado.

Mas teria sido esse lixo produzido ali? Ou teria chegado já em estado impróprio para ser consumido até mesmo por homens-bichos? Seria o lixo das classes altas "mais limpo" do que o produzido pelas periferias e bairros pobres? É preciso cautela ao ler números do lixo. A pesquisa aponta dados de Campinas:
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira,
Rio, 27 de dezembro de 1947

"A Classe A foi a que produziu menor quantidade de lixo, 10,9%", "[U]ma das regiões mais ricas onde os moradores ganham mais de 20 salários, a quantidade de galhos é maior do que em outras áreas, revelando propriedades com muito jardim. É comum encontrar também grande quantidade de vidros, como garrafas de vinho e destilados". (O Globo, 27/07/2016)

        É um lixo bem diferente daquele que há nas quebradas, onde ficam nojeiras e podridões, o ponto final da cadeia do lixo. Mas são os números que sustentam o argumento de que as classes baixas "desperdiçam mais", ou "produzem mais lixo": "Classe D, 64,3% do lixo enviado para o aterro". Galileu teria dito que fazer ciência é torturar a matéria até que ela confesse seus números. Mas também é a ele atribuída a afirmação de que a verdade não resulta do número dos que nela creem. Em nosso tempo, em nossas condições de subalternidade diante de uma produção científica cuja autoridade não nos favorece, buscamos as verdades dos acontecimentos do nosso tempo e rejeitamos torturas de quaisquer tipo.

Números, sozinhos, não trazem as matemáticas dos mundos.

Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia
UFRJ
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